"Escreve-se para não ser solitário e por amor aos outros: se você não tiver essa solidariedade, é bobagem escrever" (Ignácio de Loyola Brandão)

domingo, 12 de junho de 2011

Crônica do Amor





Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e não fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo a porta.

O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar.

Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso são só referenciais.

Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca.

Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera.

Você ama aquela petulante. Você escreveu dúzias de cartas que ela não respondeu, você deu flores que ela deixou a seco.

Você gosta de rock e ela de chorinho, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você abomina Natal e ela detesta o Ano Novo, nem no
ódio vocês combinam. Então?

Então, que ela tem um jeito de sorrir que o deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante do que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar com você. Isso tem nome.

Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra no armário. Ele não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro, e é meio galinha. Ele não tem a
menor vocação para príncipe encantado e ainda assim você não consegue despachá-lo.

Quando a mão dele toca na sua nuca, você derrete feito manteiga. Ele toca gaita na boca, adora animais e escreve poemas. Por que você ama
este cara?

Não pergunte pra mim; você é inteligente. Lê livros, revistas, jornais. Gosta dos filmes dos irmãos Coen e do Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem seu valor.

É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego fixo, bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música, tem loucura
por computador e seu fettucine ao pesto é imbatível.

Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém e adora sexo. Com um currículo desse, criatura, por que está sem um amor?

Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados.

Não funciona assim.

Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o Amor tem de indefinível.

Honestos existem aos milhares, generosos têm às pencas, bons motoristas e bons pais de família, tá assim, ó!

Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor da sua vida é! Pense nisso. Pedir é a maneira mais eficaz de merecer. É a contingência maior de quem precisa. 



(Arnaldo Jabor)

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

História Porto-Alegrense

Sempre gostei de contos e crônicas, Edgar Allan Poe sempre me fascinou, Clarice Lispector também, mas hoje venho colocar um conto de Moacyr Scliar, que no último domingo foi fazer parte da Academia de Letras do plano espiritual. Não sei se é o seu melhor conto, não sou especialista em suas obras, mas para mim é sempre emocionante ler este texto. Qual significado ele quis mostrar com este texto, também não posso lhes dizer, mas seu significado para mim é que, se existe amor verdadeiro é este retratado no conto.






Não penses que eu estou reclamando, não. Estou só contando a verdade e contar a verdade não pode fazer mal a ninguém. E a verdade é que a porto-alegrense sou eu; o orgulhoso és tu, mas a porto-alegrense sou eu. Eu já morava nesta cidade quando tu apareceste, o altivo filho de um fazendeiro da fronteira. Faz tempo isto, não é? Petrópolis nem existia, Três Figueiras era mato. Os bondes eram poucos... - Te lembras dos bondes? Bem. Eu era a modesta caixeirinha de um armarinho da Cidade Baixa. Tu, o garboso estudante que varava as madrugadas no Café Central ou no Alto da Bronze, declamando em voz alta os teus poemas. Tu eras o rapaz rico que vinha à loja onde eu trabalhava, trazendo imensos buquês de rosas.
Foi um escândalo, te lembras? O que se cochichava na Rua da Praia! É que desfilavas de braços comigo, desde a Praça da Alfândega até a Igreja da Conceição. Eu nem gostava desses passeios, mas tu ias de cabeça alta, desafiador - enquanto as senhoras e os cavalheiros nos olhavam, escandalizados. Se escandalizavam? Foste mais longe: alugaste para mim uma casa no Menino Deus. E que casa! O antigo palacete de um barão, situado no meio de um verdadeiro parque, com árvores, e estátuas, e um lago com peixinhos vermelhos. Instalaste-me ali porque eu era, dizias, a tua rainha; e de fato, como rainha eu vivia, com criados à disposição e até um carro - um dos primeiros automóveis de Porto Alegre, te lembras? - Um Edsel. Teu pai pagava tudo. Teu pai, o rico fazendeiro, achava que o filho tinha direitos de macho, não importava o que dissessem. Ou o que custasse. Pagava tudo.
E eu? Bem, eu gostava de ti. Gostava mesmo. Por tua causa, saí da casa de meus pais, na Cidade Baixa, e fui morar no palacete como uma cortesã. Mas eu gostava de ti, esta era a verdade.
Teus parentes - ricos fazendeiros como o teu pai, mas fazendeiros da cidade, dos Moinhos de Vento - deixaram de te convidar para festas. O que te irritou mais ainda. Te vingaste, alugando uma casa nos Moinhos de Vento, no reduto dos inimigos. Nos instalaste lá, eu e todos os empregados (só despediste a cozinheira, porque achavas que eu cozinhava melhor do que ela). Vinhas seguido. Não querias morar comigo, porque preferias a tua liberdade, mas vinhas seguido.
Moinhos de Vento... Lindo bairro, de casas finas. Teus parentes estavam furiosos; não te cumprimentavam. Se te encontravam na rua, viravam a cara.
Menos a tua prima, a Rosa Maria. Ela te olhava de esguelha, piscava o olho, travessa que era... Tu sorrias. Vocês se trocavam bilhetinhos. Pensas que eu não sabia? Eu sabia. Mas gostava de ti, esta é que era a verdade. E gostava da casa nos Moinhos de Vento. Um paraíso.
Um paraíso que durou pouco... Decidiste que eu deveria me mudar. Gostavas da casa, e a querias para ti, de modo que tive de sair. Fui para uma casa em Petrópolis. Comigo foram a empregada e o motorista que era também uma espécie de guarda. O jardineiro foi dispensado, porque a casa não tinha jardim; era uma casa relativamente modesta; e depois, para que jardim - era o que perguntavas, e ponderavas: jardim só dá trabalho. Eu gostava de jardim, mas não te respondi nada. Porque gostava de ti.
Casaste com a tua prima Rosa Maria e assumiste um cargo na direção da firma do pai dela. E aí começaste a aparecer cada vez menos; a vida de um homem de negócios é muito atarefada, dizias. Eu concordava, me lembrando da loja de armarinhos.
A cidade progredia e a esta altura eu já não tinha mais motorista, porque Petrópolis contava - me disseste entusiasmado - com transporte abundante, digno de uma cidade moderna: bondes, ônibus.
Petrópolis era realmente um bairro bom, mas com o passar dos anos começou a apresentar inconvenientes. Muitos de teus amigos - médicos, advogados, homens de negócio - moravam ali, além disto, a escola de balé que tuas filhas - duas garotinhas encantadoras - freqüentavam, também era em Petrópolis... Decidiste que eu deveria me mudar.
Me mandaste para Três Figueiras, um lugar que já não era mato, mas que ainda estava pouco povoado. Me instalaste numa casinha simpática. De madeira, mas muito simpática. Chovia dentro, mas eu não te incomodaria me queixando destes pequenos problemas. Vinhas me ver tão pouco que não era justo. Realmente não era justo. E a casa não era feia. Eu me distraía com as lides domésticas - a esta altura já não tinha mais empregada. (Para que empregada, numa casa pequena? - perguntaste, e estavas com a razão. Realmente, estavas com a razão).
Uns anos depois - me lembro muito bem, porque já estava costurando para fora - começaram a aparecer as primeiras casas elegantes nas Três Figueiras. Casas bonitas, as fachadas com pedra decorativa... Achaste que eu deveria me mudar para a Vila Jardim. Um pouco mais afastado, disseste, e tinhas razão; um verdadeiro jardim, disseste, o jardim que te faltava. É verdade que a casa não tinha água nem luz; mas eu não queria te incomodar. Passavas por uma fase de profunda depressão, de angústia existencial. Que é o dinheiro? - me perguntavas. Estávamos os dois com sessenta anos. Qual o sentido da vida? - teus olhos cheios de lágrimas. Eu, quase sem dentes, pensava numa dentadura nova - mas não ousava te pedir nada.
Me disseste para sair da Vila Jardim. O bairro estava ficando muito conhecido, poderiam te ver por lá. Me mandaste morar numa espécie de casa-barco que estava atracada no Guaíba, num lugar deserto, perto do Porto das Pombas. Interessante a casa-barco. Mais barco do que casa; esta, na verdade, era uma simples cabina de madeira coberta com uma lona.
Sacudida pelos temporais de inverno eu te esperava. Em um ano vieste só uma vez, no dia do teu aniversário. Estavas muito deprimido: Rosa Maria tinha morrido, tuas filhas não queriam saber mais de ti, só pensavam em viagens para a Europa. Procuravas as respostas para as grandes questões da vida no zen-budismo. Dizias que deveríamos mergulhar no nada. Eu olhava para a água que entrava no barco e concordava.
Um dia recebi um bilhete teu - trouxe-o o teu motorista, aliás o nosso antigo motorista... Dizias, numa letra muito trêmula, que a vida não tinha mais sentido para ti; que eu deveria soltar as amarras do barco e deixar que as correntes do Guaíba me levassem ao sabor do destino.
Pela primeira vez pensei em não te obedecer. É que eu gosto demais desta cidade, desta Porto Alegre que só avisto de longe e que mal reconheço. Lembro-me que gritei, não! não vou abandonar a minha cidade! E aí resolvi te escrever, lembrando toda a nossa história e te pedindo para voltares atrás em tua ordem.
Espero que recebas esta carta. É que estou escrevendo já do meio do rio - e é a primeira vez que mando uma carta numa garrafa jogada às águas. Mas espero que a recebas e que ela te encontre gozando saúde junto aos teus, nessa linda cidade de Porto Alegre.


(Moacyr Scliar)

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Chapeuzinho Vermelho por Millôr Fernandes




Era uma vez (admitindo-se aqui o tempo como uma realidade palpável, estranho, portanto, à fantasia da história) uma menina, linda e um pouco tola, que se chamava Chapeuzinho Vermelho. (Esses nomes que se usam em substituição do nome próprio chamam-se alcunha ou vulgo). Chapeuzinho Vermelho costumava passear no bosque, colhendo Sinantias, monstruosidade botânica que consiste na soldadura anômala de duas flores vizinhas pelos invólucros ou pelos pecíolos, Mucambés ou Muçambas, planta medicinal da família das Caparidáceas, e brincando aqui e ali com uma Jurueba, da família dos Psitacídeos, que vivem em regiões justafluviais, ou seja, à margem dos rios. Chapeuzinho Vermelho andava, pois, na Floresta, quando lhe aparece um lobo, animal selvagem carnívoro do gênero cão e... (Um parêntesis para os nossos pequenos leitores — o lobo era, presumivelmente, uma figura inexistente criada pelo cérebro superexcitado de Chapeuzinho Vermelho. Tendo que andar na floresta sozinha, - natural seria que, volta e meia, sentindo-se indefesa, tivesse alucinações semelhantes.)
Chapeuzinho Vermelho foi detida pelo lobo que lhe disse: (Outro parêntesis; os animais jamais falaram. Fica explicado aqui que isso é um recurso de fantasia do autor e que o Lobo encarna os sentimentos cruéis do Homem. Esse princípio animista é ascentralíssimo e está em todo o folclore universal.) Disse o Lobo: "Onde vais, linda menina?" Respondeu Chapeuzinho Vermelho: "Vou levar estes doces à minha avozinha que está doente. Atravessarei dunas, montes, cabos, istmos e outros acidentes geográficos e deverei chegar lá às treze e trinta e cinco, ou seja, a uma hora e trinta e cinco minutos da tarde".
Ouvindo isso o Lobo saiu correndo, estimulado por desejos reprimidos (Freud: "Psychopathology Of Everiday Life", The Modern Library Inc. N.Y.). Chegando na casa da avozinha ele engoliu-a de uma vez — o que, segundo o conceito materialista de Marx indica uma intenção crítica do autor, estando oculta aí a idéia do capitalismo devorando o proletariado — e ficou esperando, deitado na cama, fantasiado com a roupa da avó.
Passaram-se quinze minutos (diagrama explicando o funcionamento do relógio e seu processo evolutivo através da História). Chapeuzinho Vermelho chegou e não percebeu que o lobo não era sua avó, porque sofria de astigmatismo convergente, que é uma perturbação visual oriunda da curvatura da córnea. Nem percebeu que a voz não era a da avó, porque sofria de Otite, inflamação do ouvido, nem reconheceu nas suas palavras, palavras cheias de má-fé masculina, porque afinal, eis o que ela era mesmo: esquizofrênica, débil mental e paranóica pequenas doenças que dão no cérebro, parte-súpero-anterior do encéfalo. (A tentativa muito comum da mulher ignorar a transformação do Homem é profusamente estudada por Kinsey em "Sexual Behavior in the Human Female". W. B. Saunders Company, Publishers.) Mas, para salvação de Chapeuzinho Vermelho, apareceram os lenhadores, mataram cuidadosamente o Lobo, depois de verificar a localização da avó através da Roentgenfotografia. E Chapeuzinho Vermelho viveu tranqüila 57 anos, que é a média da vida humana segundo Maltus, Thomas Robert, economista inglês nascido em 1766, em Rookew, pequena propriedade de seu pai, que foi grande amigo de Rousseau.     

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Algumas palavras ...

Meu primeiro contato com os desenhos de Adão Iturrusgarai foi quando eu ainda era adolescente, em 2000 ele passou a colaborar quinzenalmente com a revista Capricho através da personagem Kiki, e assim passei a conhecer o trabalho desse grande cartunista.
Adão Iturrusgarai nasceu em Cachoeira do Sul, no Rio Grande do Sul, e foi em sua cidade natal, ainda com 17 anos que ele publicou seu primeiro desenho no Jornal do Povo. Estudou Publicidade e Propaganda na PUC-RS, em 1991 editou a Revista DUNDUM e logo depois foi para a França onde publicou nas revistas “Chacal Puant” e “Plag”. De volta ao Brasil, em 1994 lança a revista “Big Bang Bang”, trabalha como redator de alguns programas humorísticos na televisão como Casseta & Planeta e TV Colosso. Ainda nesse mesmo ano é incorporado ao trio “Los 3 amigos”, que têm em sua composição,Angeli, Laerte e Glauco.
Atualmente publica sua tira diária Aline no Jornal Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Tribuna do Norte em Natal, Diário de Pernambuco e Correio da Manhã em Portugal. Casado com uma argentina, com quem tem uma filha, Iturrusgarai mora em Gaiman, a 1.450 km de Buenos Aires, uma “colônia galesa encravada na Patagônia argentina", como ele costuma afirmar em seu site.
Aí estão alguns dos trabalhos deste brilhantíssimo cartunista:

















sábado, 15 de janeiro de 2011

Encontro com o passado

Eis um belíssimo conto de Elsie Lessa, que poderia ter sido escrito por mim, pois nele há todo os sentimentos que permearam minha infância e que ainda hoje fazem parte de mim. 




- Caí fora, Nina! Isto não é brinquedo de mulher...
Aquilo me doía como um tapa. Eu mordia o beiço, sentia no rosto uma quentura de ódio e ia pra dentro... Vinham lá de fora, do quintal claro de sol, gritos, risadas, correrias... Luisinho, Carlos e os meninos da vizinhança brincavam de piratas, pulavam o muro, vermelhos, sem camisa, a testa escorrendo suor. (...)
E eu no exílio. A única menina da casa, mamãe me proibia de tomar parte nos brinquedos masculinos.
Doce e persuasiva, tentava me convencer:
- Você está com onze anos! É quase uma mocinha... Esses brinquedos não servem... Isso não são modos de menina... Veja Lainha!
Lainha era o fantasma da minha meninice, tudo o que eu devia ser e que não era, o exemplo invocado a todas as horas, para minha amargura e meu ódio. Branca e loura, os cachos macios descendo até a barra do vestido, a sua voz tranquila e os seus gestos mansos eram o desespero do meu estabanamento. Eu tinha no íntimo uma admiração calada e enraivecida por aquela figura de santa, posta como padrão diante das minhas travessuras!
Água morna!
Lainha chegava de visita, o vestido impecável de babadinhos, faixa na cintura, fita no cabelo, corrente no pescoço, de que pendia uma medalhinha de ouro: "Deus te guie"...
Aquilo era uma humilhação constante, invariavelmente, tia Lola virava-se para mim e dizia:
- E a sua, Nina, quedê? Fiz questão de mandar fazer duas iguaizinhas para vocês se lembrarem sempre uma da outra. Acho tão bonito a amizade de primas...
Mamãe explicava humilhada como é que eu perdera a minha.
Tia Lola, feliz, principiava o elogio de Lainha:
- Essa menina nunca perde nada! Nunca vi! Os vestidos dela, quando dou para a filha da empregada, parece que saíram da loja! Não servem mais, mas estão novinhos...
Eu já estava no fundo do poço das humilhações. Mamãe pousava em mim um olhar tristonho, sem responder. Eu rememorava os meus vestidos rasgados.
Tia Lola, embriagada de orgulho materno, propunha:
- Toquem qualquer coisa a quatro mãos! Lainha está acabando o 5º Schmoll!
- Nina agora é que está no 3º! Atrasou-se um pouco...
- Começaram juntas, não foi? - fazia questão de frisar tia Lola.
E lá ia ela para o piano, sozinha. Eu não tinha remédio senão admirar. 
Lainha fazia rodar o banquinho, graciosa e delicada. Endireitava o vestido, num modinho bonito. E - suprema inveja! - passava a mão sob os cachos pesados, jogava-os nas costas, dourados e brilhantes, num gesto de rainha.
Eu sumia na poltrona, analisando o seu perfil perfeito, as mãos brancas dançando no teclado... Em minha frente, o espelho grande da sala, de moldura dourada, era qualquer coisa de implacável: jogava-me, como um insulto, uma magricela pálida, de cabelo preto e escorrido!
- Índia! Cegonha!
Aquilo vinha aos gritos, nas desavenças diárias. E combinava doloridamente, para minha vaidade feminina, com a opinião insuspeita de Luzia, que aconselhava mamãe, enquanto fritava bolinhos, vagarosa e sensata:
- Essa menina tá ficando com jeito de potrinho novo, com aquelas pernas compridas... A senhora precisa comprar um fortificante pra ela!
Pra que é que eu tinha nascido mulher? Não tinha jeito nenhum para a coisa. O piano me irritava, as bonecas me desinteressavam, o bordado me enlouquecia. Tinha uma impressão machucante de inferioridade, sempre que era posta à parte num brinquedo ou num passeio, por ser menina.